Texto de Juliano Lima
Schualtz, estudante de História da UEPG, Ponta Grossa.
Postado no Portal aRede em 06/02/2020, publicado no Diário dos Campos em 18-03-20, lido na CBN Ponta Grossa em 11/08/2020.
Postado no Portal aRede em 06/02/2020, publicado no Diário dos Campos em 18-03-20, lido na CBN Ponta Grossa em 11/08/2020.
Há
gente em abundância. Saem dos ônibus, batendo-se umas nas outras, corpos bem
vestidos, com conduta, limpos. Entram em confronto nessa cidade sem deuses. Meu
corpo pequenino e mulato, continua encardido. Meu ranho, minha remela, minha
raiva, ninguém os rouba. Passa um senhor engravatado e usando óculos. Peço
dinheiro, ele passa reto. Óculos programado para não ver menino em situação de
rua. Nos terminais de Ponta Grossa, repouso a cabeça no colo de minha mãe. Mamãe
também é mulher, olham para ela como se fosse outra coisa. Menor em situação de
rua não tem estatuto de criança, somos ameaças.
Gente
que passa aqui, sempre tá de saída, de entrada. Nós aqui, no acostamento, somos
intrusos. Colega de rua vende verso. Minha mãe vende bala. Um índio vende
balaio, ele não é índio, é caingangue, me disse. Também falou que existem
vários povos no Paraná e índio é um nome que não serve. Dia desses perguntei
para o índio se eu podia entrar dentro do balaio, era imenso. Ele não queria
deixar. Especulei que era escondedouro da retina dessa gente que passa.
Esses
olhares vingativos nesses rostos caretas vigiam-interrogam: pupila-tribunal. Já
pensei em roubar, não é por ser criança má, é critério de barriga, ela ronca de
noite, não me deixa dormir. A fome se alimenta do sono, brota a insônia azeda,
com ela o devaneio. Essa estranha anorexia dos sonâmbulos maltrapilhos. Sono é
coisa de gente bem alimentada, gente que tem outro dia pela frente.
Tem
dias que penso pelo estômago, reflexões digestivas, memórias gástricas. Arrasto
os pés pelados, pedindo moeda. Queria brincar de esconde-esconde: mãe por favor
me esconda desses olhares. Não curumim, responde ela. Num dia desses perguntei
para mamãe: no céu existe fome? Há uma valeta na minha barriga, dia passa e ela
fica mais esticada.
Outro
dia um senhor falou que eu não era criança, perguntei: quem roubou minha
infância? Ele atravessou a catraca, foi embora. Ninguém responde essa pergunta
que escapa dessa boca banguela: quem roubou minha infância?
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