segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Faltando (c)enso

Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa. 

Aconteceu segunda, 5, em Olarias. A corrente de êxtase, que percorre o ar quando a Seleção Brasileira goleia em jogo de Copa do Mundo, já havia se dissipado e eu estava na frente do meu prédio cavucando os bolsos para achar as chaves quando uma voz me interpelou chamando-me de "moço".

          Era um senhor de seus quarenta e poucos, cinquenta anos de idade, que se aproximou identificando-se, com delicadeza, como agente do Censo e solicitando-me que o colocasse em contato com o síndico.

          – "Mas estou largando, esse vai ser o meu último prédio", ele disse logo.

          A expressão que fiz foi de quem anteviu aonde aquilo ia dar, mas ele deve ter lido nela uma dúvida que não havia, pois esclareceu depressa:

          – "Não dá mais para fazer o Censo em Ponta Grossa. Maltratam, não querem atender, chamam de Iluminatti, globalista, Nova Ordem Mundial, funcionário daquela emissora. Esses dias fui na casa de uma senhora de cabelo branquinho e ela soltou os cachorros dela para avançarem em mim. Uma senhora de cabelinho branco!"

          Esse vocabulário, vocalizado por uma pessoa real e não na internet, tem outra textura.

          – "Que coisa...", eu disse, olhando para o chão, à procura de algo consolador para dizer (e, a bem da verdade, não encontrei até agora, caro recenseador, se este texto chegar a tuas mãos – pelo menos não algo à altura da dignidade das tuas funções).

          Para quem não sabe, o Censo iniciou no século XIX, deve ser realizado a cada 10 anos e se reveste de elevada importância na compreensão do perfil demográfico do povo brasileiro, orientando a alocação de recursos e a formulação estratégica de políticas públicas. É o microscópio pelo qual se enxergam os cromossomos da Nação.

          Coloquei o agente público em contato com o síndico, ouvi de novo a promessa de que aquele prédio seria o último e lhe desejei que ali, morada de pessoas gentis – parece-me, eu que as conheço superficialmente –, o tratassem bem. Ele fez o gesto desalentado de quem não possuía a menor esperança de que isso acontecesse.

          – "Veja bem", disse-me na mesma noite um amigo a quem narrei o acontecido, "alguém que sofre na pele essa loucura encontrou um desconhecido que sabe disso, e isso é uma forma de resistência. Logo as pessoas vão se incomodar, se perguntar o que está acontecendo, que viagem é essa, e o trator dos fatos vai arrebentar o arame farpado".

          Quando este texto for publicado, provavelmente, o Brasil terá se classificado, diante da Croácia, para as semifinais da Copa. Bandeiras cobrem as janelas.


(A presente crônica foi enviada e avaliada em data anterior ao jogo do Brasil e Croácia, no dia 9/12, onde o time brasileiro foi desclassificado da Copa do Mundo 2022).


2 comentários:

  1. Comentário adicional do autor: abstraindo o fato em si da desclassificação, acontecimento sempre traumático para nosso povo apaixonado por futebol, integra a essência da crônica versar sobre os assuntos do dia, correndo o risco de dar uns tiros no escuro como esse meu no finalzinho. Levo como um despretensioso suvenir histórico (e não darei mais vitórias de barato kkkk).

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  2. Mas fora o tema da desclassificação, o tema do censo é muito relevante. Parabéns

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