Texto
de autoria de Rosana Justus Braga, revisora, Curitiba (natural de Ponta
Grossa).
Publicada no Diário dos Campos em 19/05/2020, postada no Portal aRede em 24/06/2020.
Cegueira temporária,
espero. Pois ando à procura da crônica, e nada; oculta ou revelada, sei que
anda por aí. Olho e não vejo, embora a vida persista, silenciosa e ágil,
enquanto sei que me escapa irremediavelmente.
Estaria ela nos tormentos
do homem que ali vai, rua abaixo, num ritmo de ofegar a quem se põe a
observá-lo? Ou na mulher de preto refletida na vidraça, miragem de todas as
dores? Talvez no padre que se precipita pela lateral da igreja e se perde no
anonimato da multidão?
Tento encontrá-la no bar,
onde flagro o homem e a decisão do primeiro copo; no pombal instalado sobre a
estátua do general Osório; nos olhos opacos de quem espera em longas filas,
rumo ao subúrbio de suas vidas. Mas ela apenas se mostra de viés, provocação
fugidia, leve rastro de possibilidades e logo se dissipa, feito água da chuva
que escoa diligente pelos canais.
Nem sempre se tem a
percepção aguçada, o espírito vivo, nem sempre o encontro acontece. Muitas
vezes, caminhamos lado a lado, respiramos o mesmo instante, quase nos tocamos,
mas o milagre não se faz.
Entro na confeitaria e
sossego diante de uma xícara de café.
Na mesa ao lado, vejo um
moleque entregue à luxúria de sonhos e merengues. Fico a lhe notar as roupas
surradas, a pele encardida, os olhos ariscos de gazela. Dez, doze anos, não
mais, com a voracidade de uma geração de esfomeados.
Termino meu café e esqueço
de ir embora.
Vou ficando até ver consumido
o último pedaço, o açúcar dos dedos sendo sugado em estalos ligeiros pela
língua ainda ávida. O refrigerante desaparece em segundos, garganta abaixo.
Para arrematar, um sonoro arroto ecoa na pequena sala.
Todos olham...
Menos eu, que já olhava. Mas
o menino encara a seleta plateia e escapa do mau jeito fazendo cara de azarado
e rindo de si mesmo. Provoca risos e empatia à sua volta. Desabrocham gestos de
entendimento e cumplicidade, confraternização que acontece, inesperada, entre novos
amigos.
Quando ele sai, saio atrás,
a alma em férias, levando comigo a crônica que, por fim, encontrei.
Marlene Castanho. Ponta Grossa PR
ResponderExcluirQue pegadinha das boas, hein,Rosana!
Até eu, como leitora,fui ficando preocupadissima, KKK. E foi justamente entre uns goles, de café, e outras distrações corriqueiras, que a danada desencantou... Eis aí um inesperado e alegre desfecho:"A crônica".