segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Memórias

Texto de autoria de Sílvia Maria Derbli Schafranski, advogada e Mestre em Ciências Sociais pela UEPG, residente em Ponta Grossa.

Postado no Portal Culturação em 19/09/2023, no Portal aRede em 26/09/2023, no Portal TánoTipo em 15/11/2023, e publicado no Diário dos Campos em 13/09/2023.

          Eu acreditava tratar-se de apenas mais um idoso com Alzheimer como muitos outros de quem eu já havia cuidado, e logo os fatos me vieram à cabeça: agressão, irritação, mudança de personalidade, paranoia, invenção de coisas...

          Quando o conheci, disseram-me que ele se chamava Elias e estava sempre perdido em pensamentos e confuso em relação ao tempo e espaço.

Embora fosse polaco dos olhos bem grandes e azuis, insistia que era descendente de japonês, fato que não me causava estranheza diante do seu diagnóstico, embora, confesso, eu achava engraçado.

Relatava que tinha trabalhado duro no mercado municipal de Ponta Grossa, vendendo livros, revistas e até bebidas de "casco" reciclável nos idos dos anos oitenta.

Todos os dias, o senhor Elias me pedia para cozinhar verduras e perguntava onde estava o hashi, o qual manipulava com extrema habilidade. Enquanto comia, contava inúmeras histórias. Morara na rua Sete de Setembro, próximo à catedral da cidade. Dizia ter vindo para Ponta Grossa ainda menino só com a roupa do corpo e que agora era viúvo de uma linda mulher chamada Mirtes.

Foi assim que descobri que Elias teve uma vida incrível, plena de aventuras e repleta de viagens. Dizia que, como bom japonês, aprendeu a fazer massagem terapêutica ainda jovem e que conheceu muitos lugares do interior do estado e do país com o time da cidade, que à época adquiria projeção nacional.

Embora sempre confuso, uma coisa era muito evidente: Elias teve uma história de amor verdadeira. Descrevia sua mulher com a mesma paixão de um adolescente e sempre dizia que o segredo de ter alegria na vida era manter-se apaixonado, mas apenas por uma única mulher. Dizia que todo homem só se apaixona três vezes na vida e que a terceira ocorrência é certeira e fulminante.

Infelizmente, o senhor Elias nos deixou há pouco, mas as lições que aprendi com ele ficarão para sempre guardadas. Aquele senhor com Alzheimer (e contrariado quanto ao seu diagnóstico) foi a pessoa mais completa e dócil que encontrei em minha trajetória, pois mesmo distante de sua amada Mirtes, o sentimento e plenitude do amor estavam presentes. E, mesmo frente à ausência da amada, sua história lírica se perpetuava diariamente em suas lembranças sutis do dia a dia.

          E, foi no seu velório, que conheci seu irmão Toshio. Este sim, japonês de traços fortes, que orgulhoso comentou: ─ "Hoje, devolvemos ao alto Elias, nosso irmão de criação, certos de que o Céu se embriaga de amor e de harmonia".

6 comentários:

  1. Muito bom. Começa como uma história de acolhimento afetivo para depois se mostrar, também, uma história de acolhimento familiar num sentido mais amplo.

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  2. Que linda história! Obrigada por compartilhar conosco os segredos da felicidade, mesmo que cheguem ofuscados por um diagnóstico tão perverso.

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  3. Muito comovente a história que você divide com o leitor. Uma doença que sabe-se muito grave e sem cura, mas que ficou um pouco mais leve no seu relato.

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  4. Uauuu! Que história fantástica! E o final da crônica, então... ALFREDO MOURÃO

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