Publicado na Folha Paranaense (Jaguariaíva) em 10/12/2019 e no Diário dos Campos em 14/02/2019, postado no Portal aRede em 05/08/2020.
Na primeira vez que o vi, teria minguados três
ou quatro anos, e vinha na esteira dos pais, catadores de papel. Com ele,
alguns outros, todos nascidos do casal esquálido que puxava a procissão de
devotos mirins. Regularmente surgiam no bairro, à cata do lixo limpo, como
diziam.
Ele,
o menorzinho, entrava na loja e puxava a ladainha com sua voz de pássaro
canoro. Levava, além de caixas e papéis, minha gratidão sem medida, pois me permitia
reparar injustiças com pequenos mimos, algumas roupas aposentadas, brinquedos
cansados e um convite para ir à lanchonete do outro lado da rua.
Ficávamos
ali, enquanto a família se espalhava catando o que pudesse carregar. Em questão
de segundos, ele escalava a banqueta de pernas altas, apoiava-se no balcão com
os cotovelos, pedia logo uma coxinha e fartava-se de ketchup e mostarda.
Eu registrava detalhes,
os pés descalços balançando no ar, a expectativa ansiosa, a avidez da boca
cheia, o inusitado bigode, o olhar de criança ainda intacto, milagrosamente.
Quantas vezes coloquei de
lado minha rotina de trabalho pelo prazer de dividir com ele o balcão da lanchonete.
Foram
muitas, incontáveis, até que notei a penugem em seus lábios e me dei conta do
adolescente à minha frente. O pardalzinho crescera, já vinha sozinho no ofício
de catar papel, empurrando ele próprio o carrinho muitas vezes recauchutado. Era
o menino de sempre, ainda que mudado. Vinha buscar um pouco do muito que lhe
faltava.
Mas eis que um dia, ele me surpreende com uma visita
inesperada: uma garota esmirrada ao seu lado e um bebê recém-nascido. “Minha
esposa” – anunciou, com gravidade na voz. Mal pude acreditar.
Desviei o olhar pasmo
para a menina encardida que me sorria, e logo para o embrulho de parcos panos
que ela segurava como se fora a boneca que nunca tivera. Ele, orgulhoso, saboreava
meu espanto.
Desconcertei-me.
Gaguejei palavras tolas, tímidos votos de saúde, prosperidade e vida longa,
vejam só, ao desvalido casal; ao pardalzinho adormecido, que não se sabia semente
plantada em solo adverso, fiz reza forte no meu silêncio.
Depois, fiquei a vê-los
descer a rua, curvados sobre o menino, iluminados por uma alegria que eu não
era capaz de entender.
Um belo texto, me senti na pele da autora.
ResponderExcluirMe emocionei muito, lindo texto, cheio de sentimentos que a gente se conecta fácil
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