terça-feira, 21 de setembro de 2021

A voz do silêncio

Texto de autoria de Rosana Justus Braga, revisora, Curitiba (natural de Ponta Grossa).

Publicada no Correio Carambeiense em 25/09/2021 e no Diário dos Campos em 20/10/2021, postada no Portal CulturAção em 14/09/2022.

De tudo, o que mais lembro é o silêncio da tarde, a sinfonia de insetos lá fora, o ressonar do avô no quarto ao lado, o relógio da sala a contabilizar o tempo. Na hora da sesta a rua também dormia seu sono breve, e a casa seria a própria morte, não fosse o ressonar do avô.

No quarto ao lado, a vida pulsava no peito da menina que se fazia de morta, os sentidos todos despertos, à espera do instante da ressurreição.

De repente, um tilintar na cozinha, um ruído de água na torneira, um avivar o fogo, logo o cheirinho de café coado invadiria os quartos e a vida voltaria a pulsar. Morte e renascimento diários era o que eu via na casa dos avós, nas férias escolares.

Gosto de pensar que a cidade natal dorme dentro da gente, como se fora a sesta da tarde à espera do que seja capaz de despertá-la.

O que me faz pensar em Proust, que viu o passado brotar de sua xícara de chá. A cidade, a infância, as pessoas, mas antes a emoção avassaladora até entender o que se passava, chegar na essência de tudo, reencontrar ali um tempo em que já nada mais subsistia, após a morte dos seres amados, a destruição das coisas, apenas o sabor e o odor permaneciam ainda muito tempo, como almas a penetrar o edifício imenso da memória.

A voz do silêncio sempre foi meu despertador pessoal, a me introduzir nas dobras, onde ficam as lembranças já esmaecidas.

Mas a roda da vida vai girando e, hoje, tenho quem me leve a viajar no tempo sem a precisão de silêncios. Netos. Netos que parecem não acreditar que avós já foram crianças, tal o empenho em querer ouvir as histórias do passado.

E eu me entrego, sem resistência.

Banho de chuva? Guerra de lama? Briga de rua? Chego a pensar que talvez exagere, mas não, as mãos esfoladas, as unhas encardidas, os joelhos ralados sempre foram a confirmação da coragem, do arrojo das ideias, das incursões destemidas mato adentro, dos sustos inevitáveis, da corrida desenfreada na hora do aperto.

É sob os alaridos de hoje que me vejo embarcar nesta nave do tempo, na companhia de uma plateia atenta e incrédula.

Quando eles se cansarem, tudo voltará ao silêncio da sesta.

Até que algo inesperado faça a memória vibrar outra vez.

3 comentários:

  1. A estação da infância, sem dúvida, é a que deixa suas impressões mais impregnadas em nós.. Ah, querendo ou não, seja bom ou ruim, sempre vamos recordar as peripécias daquele percurso...

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  2. Respostas
    1. Digo, uma leveza de sesta, convidando o coração acse tranquilizar.

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